O pastor evangélico Rufo Souza, 37 anos, viu uma onda de medo se alastrar pela igreja Assembleia de Deus na qual trabalha, na região de Washington, capital dos Estados Unidos.
“Eu tenho hoje a guarda de mais de 20 crianças comigo pelo medo dos pais de serem deportados”, conta à reportagem. O pastor diz que, desde que Donald Trump tomou posse como presidente no último dia 20, o receio de blitze do ICE (serviço de imigração dos EUA, na sigla em inglês) tem levado famílias a temerem serem separadas.
“No pânico, elas falaram: ‘pastor, o senhor tem documento, pode ficar com a guarda do meu filho?’”, relata. “É uma questão de pânico, porque dificilmente o pai e a mãe vão ser deportados juntos, no mesmo voo e na mesma hora.”
Rufo diz que, desde o final de janeiro, tem ido quase todos os dias a tribunais no estado de Maryland para participar de audiências que garantem a guarda compartilhada da criança ou adolescente de até 18 anos ao pastor.
Ele diz que os juízes são bem claros ao dizer aos pais que, com a autorização, Rufo poderia até mesmo sair do país com as crianças —mas as famílias têm escolhido confiar. Rufo, por sua vez, se compromete a promover o reencontro de pais e filhos caso o pior aconteça e a criança ou adolescente fique nos Estados Unidos se os responsáveis forem deportados.
A lei dos Estados Unidos protege pessoas em situação migratória irregular até os 21 anos de idade que os impedem de ser deportadas. A questão da separação de família foi um escândalo no primeiro mandato de Trump, de 2017 a 2021.
O presidente adotou na época a prática de “tolerância zero” contra a entrada de imigrantes em situação irregular, o que levou ao afastamento de pais e mães dos seus filhos ao cruzarem a fronteira nos EUA como tentativa de dissuadir mais pessoas de fazerem a viagem. Os maiores de idade eram enviados a presídios para aguardar o julgamento da análise dos casos que pediram deportação, enquanto as crianças ficavam no país sob a guarda do governo.
Em 2018, a Justiça proibiu Trump de fazer a separação de famílias. Mas, de acordo com a União Americana pelas Liberdades (ACLU, na sigla em inglês) de 2023, 3.900 crianças foram separadas dos pais durante os quatro anos de governo de Trump. A entidade representou as famílias separadas num processo.
Agora, os planos são ainda mais graves. Trump já disse que se for o caso, deportará famílias inteiras. Reportagem da NBC News desta semana mostra que o ICE caminha para adotar essa política, o que poderá levar os pais e as crianças a ficarem detidos.
Ainda assim, o temor da separação continua assombrando famílias que estão hoje bem distantes da fronteira.
Uma das razões é que Trump escolheu o linha-dura Tom Homan para comandar o ICE, órgão responsável pelas fronteiras americanas. Homan comandou o serviço de migração no início do primeiro mandato de Trump e foi um dos primeiros defensores da separação de famílias para dissuadir os migrantes.
A tributarista Caroline Knight, que mora em Maryland há 18 anos, atende à comunidade de imigrantes com serviços como declaração de impostos de renda e ajuda para obter uma espécie de identidade fiscal, que permite que a pessoa pague impostos mesmo sem estar regularizada no país.
Caroline conta que recentemente tem recebido muitas ligações de pais para reconhecer em cartório documentos atestando que a criança ficará sob a guarda de uma pessoa específica caso sejam deportados. Só no dia que a Folha conversou com ela na semana passada, foram 11 ligações nesse sentido. Caroline tem encaminhado essas famílias para as igrejas, que têm se mobilizado para atuar em conjunto nesses casos.
“As pessoas estão com medo de serem removidas e terem suas crianças deixadas para trás”, diz.
Ela atribui parte do que está ocorrendo a uma estratégia bem sucedida de Trump de aterrorizar a população de imigrantes. Maryland, onde a tributarista atua, é um dos estados que mais protegem e dão incentivos à população de estrangeiros.
Dados de 2022 mostravam que, dos seus cerca de 6 milhões de habitantes, 16,6% tinham nascido fora dos EUA. Os trabalhadores eram ainda mais: 22% deles eram imigrantes. A grande parte deles, embora não seja regular no pais, paga impostos e contribui para a Receita americana.
Por isso, avalia Caroline, Trump teria dificuldade de aplicar a sua política de deportação em massa no estado. O que não é motivo, entretanto, para minimizar o temor entre famílias.
Trump e a Casa Branca têm anunciado as batidas do ICE como vitrine para mostrar que as suas políticas estão em curso. As redes sociais de órgão do governo replicam as informações postadas pelo órgão americano com a quantidade de pessoas detidas.
O ICE relata ter detido mais de 7.000 pessoas no total. A maioria não tem antecedentes criminais. Ainda assim, os perfis do órgão postam retratos justamente daqueles que têm ficha na polícia, descrevendo nas postagens os crimes pelos quais eles foram condenados.