“A Argentina é um paciente em terapia intensiva, digamos que um resfriado não lhe ajuda muito.” O analista Carlos Fara descreve assim a situação atual de seu país. A metáfora do resfriado seria o recente escândalo do criptogate envolvendo o presidente Javier Milei.
A crise aberta pela divulgação da cripmoeda $Libra, que em questão de horas colapsou, abalou os mercados e o governo de uma trajetória econômica até aqui exitosa e promete ter consequências, ainda que esses impactos políticos e econômicos não estejam bem prognosticados.
A Casa Rosada dá a entender que Buenos Aires está às portas de um novo acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional) para liberar cerca de US$ 10 bilhões. Milei terá nesta quinta-feira (20) mais um encontro com a diretora-geral do fundo, Kristalina Georgieva, nos EUA.
Ainda não há sinais claros de que o criptogate possa impactar a decisão do organismo financeiro, em especial em um momento no qual espera-se que a mão amiga de Donald Trump, presidente dos EUA que é ídolo de Milei e que também é afeito a divulgar (e criar) criptomoedas, ajude na aprovação, mas o receio está instaurado.
O mercado reagiu ao escândalo político que agora se desdobra em ações judiciais e pedidos de impeachment, mas não por muito tempo. Na segunda-feira (17), o principal índice de ações da bolsa de Buenos Aires, o S&P Merval, caiu 5,58%. Um dia depois, na terça-feira (18), recuperou-se, com alta de 6,1%. O indicador do risco-país também voltou a ficar abaixo de 700 pontos.
Mais do que isso, a divulgação de um novo relatório do Goldman Sachs sobre a Argentina foi celebrado pelo governo. O documento parece ter se centrado nos avanços macroeconômicos e ignorado o ruído político atual. Diz o banco: “Um rápido ajuste fiscal, que leva a um orçamento equilibrado, tem sido a pedra angular do programa de reequilíbrio macroeconômico que se está implementando na Argentina”.
Também nesta terça-feira, um levantamento do BofA acalmou os ânimos. Em uma consulta com seus gestores de fundos concentrados na América Latina, 69% disseram esperar altas nos preços dos ativos argentinos nos próximos seis meses. Apenas 10% compartilhou uma visão negativa, e 8% se manteve neutro.
Nas palavras do ministro da Economia, o pai do choque econômico de Milei, Luis “Toto” Caputo, “quando os sólidos fundamentos econômicos não mudam, os ruídos da conjuntura tendem a ser vistos pelos mais experientes como uma oportunidade”, escreveu ele no X.
Para o analista Carlos Gervasoni, diretor do departamento de ciência política e estudos internacionais da Universidade Torcuato Di Tella, ainda é cedo para medir o impacto, mas “pela primeira vez em muito tempo o governo está na defensiva em vez de pautar o debate”.
Milei colheu os louros e a aprovação de um ano economicamente exitoso. Seu governo diminuiu mais de 20 pontos a inflação mensal, conseguiu consecutivos superávits fiscais, encurtou a diferença cambiária e, ao que as projeções mais confiáveis indicam, diminuirá a pobreza para 38% da população após levá-la ao recorde de 53%.
Os dois analistas, Fara e Gervasoni, bem como outros observadores locais, calculam que a popularidade do presidente será impactada. “Isso não significa que vai ter implicações nas eleições legislativas de outubro, mas gera muitas perguntas na opinião pública, que deve responder”, diz Fara.
A primeira pesquisa foi divulgada nesta terça-feira, mas seria arriscado dizer que seu resultado já mede o impacto da crise do criptogate. O levantamento da consultoria CB foi feito com cerca de mil argentinos do dia 11 ao dia 15, portanto pegando dois dias da crise (sexta, 14, quando Milei faz a publicação e a apaga; e sábado 15, de repercussão). Nele, Milei tem uma oscilação de dois 2,5 pontos na aprovação, de 51,8% para 49,3%, dentro, porém, da margem de erro (de 2 a 3 pontos).
Gervasoni diz que a crise pode fortalecer o Proposta Republicana, ou PRO, partido do ex-presidente Mauricio Macri que é fundamental para Milei aprovar seus projetos no Congresso. A legenda será ainda mais importante neste momento e tende a ser mais valorizada pela cúpula do poder. O partido pediu que haja investigação, e Macri disse que o acontecimento foi grave.
“O que vimos foi um presidente descuidado e mal cercado”, disse Macri. “Ficou em meio a uma situação que configurou uma fraude e que merece uma investigação séria”, completou.
O tema é investigado pela Justiça, mas a expectativa é de que seja um processo longo, e também pelo Executivo, que disse criar um escritório anti-corrupção, amplamente criticado pelos opositores.
Já o pedido de impeachment tem grandes dificuldades para avançar no Congresso hoje. Mas a expectativa de quem o apoia é que as possíveis consequências econômicas do criptogate angariem mais respaldo ao pedido nas próximas semanas. É a economia argentina, como sempre, a peça-chave.
Enquanto isso, aliados fiéis a Milei diminuem a importância das denúncias. À reportagem Damián Arabia, do partido de Macri, o PRO, diz que o presidente “teve a honradez de dar as caras, dizer a verdade, sem culpar ninguém ou inventar que teria sido hackeado”.
“E também refletiu sobre um aprendizado, de que desde que assumiu como presidente pretendia seguir sendo [o cidadão] Milei, não o presidente. Ele terá de levantar mais barreiras para que alguém o acesse.”
Arabia chama de irresponsáveis e hipócritas aqueles que pedem o impeachment do presidente. “São os mesmos que destroçaram a economia do país. A ex-presidente Cristina Kirchner, uma das que agora apoia as acusações contra Milei, foi condenada em segunda instância por corrupção no ano passado. Caso avance no Senado a lei da Ficha Limpa recém-aprovada na Câmara, ela ficaria inelegível.
“Não vai haver nenhum impacto real”, diz Arabia. “Somos muitos no PRO e em outros blocos e não vamos permitir, faremos um escudo institucional. Os golpistas de sempre não vão abalar esse governo.”
Outro deputado próximo a Milei, que fala sob reserva, diz que “isso tudo é uma ‘boludez’ [besteira]” e que não vê consequências expressivas, a menos que algum processo nos Estados Unidos contra Milei traga instabilidade aos mercados locais.