Referências ao presidente deposto Bashar al-Assad e a seu pai, que governou a Síria antes dele, foram removidas, assim como imagens de deuses pré-islâmicos. A definição de mártir foi alterada e agora significa alguém que morreu por Deus, não por seu país. Uma rainha da era romana foi retirada de alguns livros didáticos.
Apenas semanas após uma coalizão de rebeldes derrubar o regime de Assad, o governo interino estabelecido em Damasco se apressou em ordenar uma série de mudanças no currículo escolar do país. As modificações abrangem disciplinas que vão desde inglês e história até ciências e estudos islâmicos.
A medida foi criticada por professores e outros sírios que se opõem não apenas à natureza de algumas das mudanças, mas também ao fato de terem sido decididas tão rapidamente, sem transparência e sem orientação de professores e do público em geral.
Críticos afirmam que tanto as mudanças quanto a forma unilateral como foram ordenadas são sinais preocupantes sobre como o novo governo sírio planeja governar um país diverso.
Algumas das mudanças, detalhadas em nove páginas divulgadas pelo Ministério da Educação do país recentemente, foram amplamente bem recebidas, como a remoção da glorificação do regime de Assad dos livros didáticos.
Mas alguns sírios questionam por que outras mudanças foram uma prioridade dadas questões mais urgentes do país, como insegurança, tensões sectárias e uma crise econômica.
“As modificações devem se restringir apenas às coisas que envolviam o regime anterior”, disse Rose Maya, 45, professora de francês do ensino médio, em um pequeno protesto contra as mudanças do lado de fora do Ministério da Educação em janeiro. “Mas não há necessidade de todas as outras mudanças.”
Maya estava acompanhada por cerca de duas dezenas de outras pessoas —entre elas professores, estudantes, médicos e artistas— munidas de cartazes que expressavam objeções às mudanças. Ao lado dela estava outro professor, Muayid Muflih, com um cartaz que dizia: “O poder não deve ser exercido sobre o povo; ele pertence ao povo”.
Muflih disse que até recentemente ensinava sobre nacionalismo, um assunto amplamente visto como servindo à agenda do regime de Assad. Agora ele foi completamente eliminado do currículo.
Maya, referindo-se a Nazir Mohammad al-Qadri, o ministro da educação, disse que “como ministro interino, ele não deveria fazer mudanças”. Ela afirmou ainda que era necessário haver transparência em relação aos comitês que o ministério disse ter formado para revisar os livros didáticos e sugerir as mudanças. “Deveria haver professores envolvidos.”
O ministério defendeu as mudanças e rejeitou sugestões de que as alterações eram islâmicas, ou um aceno ao salafismo, uma vertente conservadora do islã sunita à qual muitos dos novos líderes do país pertencem.
“As modificações eram necessárias após a libertação da Síria”, disse al-Qadri em uma entrevista. “Essas modificações não foram mudanças no currículo, mas modificações de alguns dos slogans e símbolos que costumavam glorificar o regime anterior.”
Al-Qadri fazia parte do Ministério da Educação em Idlib, a província no noroeste da Síria administrada pelo grupo rebelde islâmico que agora lidera o governo interino, o HTS (Organização para a Libertação do Levante, na sigla em árabe).
Comitês especializados envolvendo membros do governo liderado pelo HTS na província de Idlib e membros do Ministério da Educação da era Assad revisaram os livros didáticos e sugeriram mudanças, disse ele.
Mutasem Syoufi, diretor executivo do The Day After, um grupo sem fins lucrativos, disse que o governo interino estava tentando impor sua visão não apenas sobre o sistema político da Síria, mas também sobre sua vida pública. O The Day After foi fundado em 2012 por membros da oposição síria para planejar uma fase de transição na Síria após a eventual queda do regime de Assad.
“As mudanças são um claro reflexo de uma leitura muito restrita do islã e nos lembram da origem do grupo que está no comando da Síria hoje”, disse ele. “Não há um ponto de vista inclusivo.”
Em toda a Síria, mesmo enquanto as pessoas celebram a derrubada de um regime brutal e autocrático, há alguma apreensão sobre o futuro do país sob um governo liderado por rebeldes islâmicos.
O novo líder de fato da Síria, Ahmad al-Sharaa, disse recentemente que poderia levar de dois a três anos para redigir uma nova Constituição e até quatro anos para realizar eleições. É algo alarmante para os sírios que expressaram medo de terem trocado um líder autoritário por outro.
Várias pessoas no protesto acompanhado pela reportagem questionaram por que a remoção de uma rainha da era romana era uma prioridade para a nova liderança síria, que já está sobrecarregada com a tarefa repentina de administrar um país inteiro e reconstruir o Estado.
Na página 19 do livro didático de Estudos Islâmicos do terceiro ano, uma referência a Zenóbia, rainha da colônia romana de Palmira, na Síria central atual, foi removida. Uma anotação ambígua na lista de mudanças tem sido interpretada por muitos como prova de que a veem como uma pessoa fictícia.
Al-Qadri disse que ela não foi removida dos livros de história. Ele disse que ela foi deletada do livro de Estudos Islâmicos porque viveu e governou em um período pré-islâmico.
“Não negamos que Zenóbia esteve presente na história”, disse ele. Mas, acrescentou, “somos contra a inclusão dela neste livro”.
A exclusão da líder feminina do livro didático, no entanto, preocupou alguns sírios, que veem isso como um ataque à história lendária da Síria.
“Se ensinarmos a esta geração que ela era um personagem fictício, então perdemos nossa conexão com o passado”, disse Maya. “Isso significa que não temos um passado. E aqueles que não têm um passado não têm um futuro.”
Outra das mudanças no currículo que preocupa os sírios diz respeito à tradução de um verso do Alcorão. O último verso do primeiro capítulo do livro sagrado muçulmano se refere a “aqueles que estão desviados”.
No livro de estudos islâmicos do primeiro ano anterior, a frase foi definida como “aqueles que se afastaram do caminho certo”. Sob as mudanças do novo governo, a frase agora é definida como “cristãos e judeus”.
A artista Manwella al-Hakim, 60, que é muçulmana e usa um hijab, segurou um cartaz no protesto se opondo a essa nova interpretação.
“Não queremos coisas que nos dividam”, disse ela. “A Síria sempre teve todas as religiões e todas as crenças.”
Perto dela, o jornalista aposentado Ziyad al-Khoury, 61, segurava dois cartazes, um dos quais dizia: “Sou cristão e não estou desviado”.