Por meses, líderes do Hamas defenderam a decisão do grupo terrorista de lançar os ataques de 7 de outubro de 2023 contra Israel, que deixaram cerca de 1.200 mortos —mesmo que isso tenha desencadeado uma ofensiva devastadora de Tel Aviv, que matou dezenas de milhares de pessoas na Faixa de Gaza e reduziu o território palestino a escombros.
Após o atentado, a facção chegou a declarar vitória sobre Israel, e alguns de seus membros prometeram que seus combatentes realizariam mais ataques como os de 7 de outubro no futuro.
Agora, um dos principais integrantes do grupo está fazendo ressalvas públicas sobre o ataque, que desencadeou uma crise humanitária responsável por deslocar quase 2 milhões de pessoas e gerar uma escassez crítica de alimentos e cuidados de saúde. Trata-se de Mousa Abu Marzouk, 74, chefe do escritório de relações exteriores do Hamas baseado no Qatar.
Primeiro líder do gabinete político do Hamas na década de 1990, Abu Marzouk disse em uma entrevista por telefone ao The New York Times, na última sexta-feira (21), que não teria apoiado o ataque se soubesse do caos que se seguiria em Gaza. Sabendo das consequências, afirmou ele, teria sido impossível aprovar o atentado.
O integrante da facção disse ainda que não foi informado sobre os planos específicos para o 7 de Outubro, mas que ele e outros líderes políticos do Hamas endossaram a estratégia geral de atacar militarmente Israel.
No que lhe diz respeito, continuou, o ataque não teria ocorrido “se fosse esperado que acontecesse o que aconteceu”.
Ele também sugeriu que havia alguma disposição dentro do Hamas para negociar o futuro das armas do grupo em Gaza —o que tem sido um ponto de discórdia nas negociações com Israel—, adotando uma posição que outros integrantes costumam rejeitar, mas que pode ajudar a evitar a retomada da guerra, segundo analistas. Desde o início do conflito, Israel diz querer que o Hamas desmantele suas capacidades militares.
Não está claro até que ponto as opiniões de Abu Marzouk sobre o 7 de Outubro são compartilhadas por outros líderes do Hamas ou se foram apenas uma tentativa de influenciar negociações com Israel ou pressionar o grupo internamente. Outros membros, especialmente aqueles intimamente ligados ao Irã e à facção libanesa Hezbollah, tendem a adotar uma linha mais dura.
Após a publicação da reportagem, o Hamas afirmou que os comentários atribuídos a Abu Marzouk pelo jornal eram incorretos e haviam sido tirados de contexto. Também afirmou que o membro de alto escalão do grupo chamou o ataque de “uma expressão do direito” dos palestinos à resistência e de sua “rejeição ao cerco, ocupação e construção de assentamentos”.
A declaração acrescentou também que o líder reafirmou a posição do grupo de que “as armas da resistência” não poderiam ser abandonadas enquanto houvesse ocupação de terras palestinas.
Seus comentários sugerem haver diferenças entre os membros do Hamas sobre o 7 de Outubro e suas consequências. Eles também indicam que a frustração dos palestinos em Gaza, que dizem que o ataque os fez passar um sofrimento extraordinário, tem algum impacto dentro da facção.
Os comentários de Abu Marzouk foram semelhantes aos feitos por Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, após a guerra de 2006 entre Israel e o grupo libanês. A escala da destruição no conflito daquele ano levou Nasrallah a admitir que seu grupo não teria sequestrado e matado vários soldados israelenses na época se soubesse que isso desencadearia uma resposta tão forte.
Nos próximos dias, espera-se que Israel e Hamas comecem uma discussão sobre a segunda fase do cessar-fogo em Gaza, que prevê o fim permanente dos combates, a retirada completa de Israel e a libertação de mais reféns israelenses e prisioneiros palestinos. Atrasos no início dessas conversas, no entanto, juntamente com disputas sobre a implementação da primeira fase, reforçaram os temores de que a trégua possa desmoronar e a guerra recomeçar.
Abu Marzouk, que passou anos vivendo nos Estados Unidos, há muito é visto como uma das figuras mais pragmáticas do Hamas. A guerra cobrou um preço alto de sua família —seu irmão de 77 anos, Yousef, foi morto nos combates.
Segundo o líder, a sobrevivência do Hamas na guerra contra Israel foi em si uma “espécie de vitória”. Ele comparou o grupo a uma pessoa comum lutando contra Mike Tyson, o ex-campeão de boxe peso-pesado —se o novato sobrevivesse aos golpes, as pessoas diriam que ele foi vitorioso.
Em termos absolutos, porém, seria inaceitável afirmar que o Hamas venceu, de acordo com ele, especialmente considerando a escala do que Israel infligiu a Gaza. “Estamos falando de uma parte que perdeu o controle de si mesma e se vingou de tudo”, disse. “Isso não é uma vitória sob nenhuma circunstância.”
O Exército israelense afirma ter conduzido suas campanhas aéreas e terrestres em Gaza de acordo com a lei internacional, e que estava realizando ataques contra o Hamas, classificado como terrorista pelos EUA e por outros países. No entanto, especialistas em direito internacional acusam Israel de usar a força de maneira desproporcional, o que resultou na morte de muitos civis.
Abu Marzouk também sugeriu que haja alguma abertura dentro da liderança do Hamas para negociar o futuro das armas do grupo em Gaza, uma questão espinhosa que outros membros disseram estar fora de questão.
“Estamos prontos para falar sobre qualquer questão”, disse, quando questionado sobre as armas. “Qualquer questão que seja colocada na mesa, precisamos falar.”
O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, insiste que seu país não encerrará a guerra com o Hamas sem desmantelar as capacidades governamentais e militares do grupo. Embora a facção expresse disposição para ceder a governança civil em Gaza, recusa-se a abrir mão de suas armas.
As declarações de Abu Marzouk pareceram contradizer as de Osama Hamdan, outro líder do Hamas. Em uma conferência em Doha, no Qatar, no meio deste mês, Hamdan disse que “as armas da resistência” não estavam em discussão, parecendo descartar um acordo que envolva a questão. Questionado sobre essas declarações, Abu Marzouk disse que nenhum líder poderia definir a agenda do grupo por conta própria.
De acordo com Ibrahim Madhoun, um analista próximo do Hamas, há múltiplas visões dentro do grupo sobre questões importantes, mas quando suas instituições tomam uma decisão, todos a apoiam.
Após as conversas sobre a segunda fase do cessar-fogo serem adiadas, funcionários israelenses e americanos passaram a falar cada vez mais sobre estender a primeira fase.
Libertar mais alguns reféns e prisioneiros durante uma extensão da primeira fase, acrescentou Abu Marzouk, poderia ser discutido. Mas ele esclareceu que, sob quaisquer circunstâncias, o Hamas exigiria muito mais prisioneiros em troca de cada refém, porque o grupo considera os reféns israelenses restantes como soldados. Ele mencionou 500 e 1.000 prisioneiros como possíveis números para cada sequestrado.
Durante a primeira fase, centenas de detentos palestinos foram libertados, mas o número de prisioneiros por refém não excedeu 50, no geral.
O líder disse ainda que o Hamas também está aberto a libertar todos os reféns ao mesmo tempo se Israel estiver disposto a libertar os milhares de palestinos de suas prisões, acabar com a guerra e se retirar de Gaza. “Estamos prontos para um acordo abrangente”, afirmou. Funcionários de Israel, no entanto, descartaram propostas anteriores para trocar todos os reféns por todos os prisioneiros.