Com a eleição geral mais importante da história recente da Alemanha, que deve decidir o rumo do país neste domingo (23), a sociedade alemã se depara com comparações entre este momento histórico e aquele que é um dos mais analisados do século 20: a República de Weimar, que existiu entre 1918 e 1933.
O fantasma do período relembrado principalmente como o prelúdio para o nazismo se explica pela força cada vez maior da AfD (Alternativa para a Alemanha), partido de extrema direita que já se tornou o movimento radical mais expressivo no país desde o fim da Segunda Guerra e que está em confortável segundo lugar nas pesquisas eleitorais, à frente do SPD do premiê Olaf Scholz.
Nos últimos 80 anos desde o fim do nazismo, a República de Weimar adquiriu, com sua diversidade de posições políticas, governos instáveis e economia desastrosa, ares trágicos na consciência coletiva alemã. Décadas depois, seguem vivas as discussões sobre qual força política leva a maior parcela de culpa para a chegada de Adolf Hitler ao poder em janeiro de 1933.
Embora articulistas e historiadores na imprensa alemã hoje estejam divididos sobre a validade da comparação entre o momento atual e 1933, em um aspecto os períodos se assemelham: os partidos democráticos trocam acusações sobre quem é mais responsável pelo fortalecimento da AfD entre o eleitorado —e acumulam profundas divisões sobre o que é preciso fazer para impedir que ela chegue ao poder.
Até aqui, a principal estratégia tem sido o Brandmauer, o firewall ou cordão sanitário erguido pelos partidos do campo democrático, que dizem se recusar a compor um governo com a AfD a qualquer custo. Assim, a menos que o partido extremista alcance mais de 50% dos votos, ele não tem como chegar ao poder —mas essa barreira já mostra sinais de enfraquecimento.
Paradoxalmente, essas discussões devem se intensificar após as eleições. Isso porque, no sistema parlamentarista da Alemanha, o primeiro-ministro só é definido depois de negociações entre os partidos para que se chegue a uma coalizão capaz de obter maioria entre os 630 assentos no Bundestag, o Parlamento. E a configuração que, segundo as pesquisas, parece ser a mais provável vem com o risco de isolar a AfD na oposição —e, potencialmente, fortalecê-la ainda mais no próximo pleito.
Veja abaixo quais são as coalizões possíveis entre os partidos alemães para formar um governo após a eleição.
Coalizão Quênia
A configuração com mais chances de conseguir uma maioria folgada no Bundestag é a aquela formada pela CDU, partido líder das pesquisas sob o candidato Friedrich Merz, pelo SPD de Scholz e por Os Verdes. Chamada assim pelas cores dos partidos envolvidos (preto para a CDU, vermelho para o SPD e verde para o partido ambientalista, que formam a bandeira do país africano), a coalizão tem a seu favor uma possível maioria de 436 assentos.
Entretanto, ela apresenta vários riscos políticos. As negociações poderiam se enroscar em vários pontos onde as discordâncias entre os partidos são grandes, como o combate à mudança climática, imigração, impostos, orçamento e economia.
Além disso, mesmo que fossem bem-sucedidas, um governo entre três partidos tão diferentes poderia ser instável, como foi a Coalizão Semáforo de Scholz, e fortalecer a oposição —que, nesse caso, seria principalmente a AfD. Nesse cenário, os extremistas poderiam utilizar o eventual caos do governo para se fortalecer ainda mais e alcançar novos recordes de votos nas próximas eleições (que poderiam ser convocadas mais cedo, a depender da instabilidade do país).
Mesmo com todos esses riscos, se a extrema direita surpreender e for melhor do que apontam as pesquisas hoje, a Coalizão Quênia pode ser a única solução que restaria aos partidos para manter o firewall de pé e impedir a chegada da AfD ao poder.
Grande Coalizão
Composta pela CDU e pelo SPD, a Grande Coalizão já governou muitas vezes na história recente da Alemanha —foi com essa constelação que a ex-primeira-ministra Angela Merkel se manteve no poder por boa parte de seus 16 anos à frente do país, e não é difícil de imaginar que os partidos possam de novo entrar em acordo.
Chamada assim porque a união dos dois principais partidos do país costumava reunir maiorias avassaladoras no Bundestag, uma Grande Coalizão hoje teria pouco mais da metade dos assentos no Parlamento.
Uma negociação também poderia ser dificultada pelas posições mais acirradas da CDU em relação à imigração: o candidato Friedrich Merz representa uma ala do partido oposta a Merkel, que defendeu o acolhimento a refugiados no auge da crise de 2015, e tem levado a sigla a posições que, durante a campanha, Scholz chamou de contrárias a legislação —como a restrição ao direito de asilo.
Coalizão Kiwi
Escura por fora e verde por dentro, a fruta chinesa empresta seu nome a uma possível coalizão formada pela CDU e pelos Verdes, partido ambientalista que hoje é liderado pelo atual vice-premiê, Robert Habeck.
Embora capaz de atingir maioria, ela seria ainda mais apertada do que a da Grande Coalizão, e surpresas nas urnas podem tornar a configuração inviável. Além disso, outro fato que joga areia em um governo Merz/Habeck é a oposição ferrenha da CSU, partido irmão da CDU que concorre apenas na Baviera, a compor com os Verdes —a quem consideram extremistas demais no combate à mudança climática e “inimigos dos carros”, tema sensível no estado que abriga uma indústria automobilística importante.
Vermelho, vermelho e verde
Esta é a única configuração que permitiria a um impopular Olaf Scholz permanecer no poder como primeiro-ministro. Por enquanto, as pesquisas mostram que um governo entre SPD, Verdes e A Esquerda não teria chance de formar maioria no Bundestag —mas uma campanha agressiva da sigla mais à esquerda nas redes sociais, aliada à crítica estridente da decisão de Merz de aprovar uma moção no Parlamento com votos da AfD, resultaram em um aumento expressivo de intenções de voto do partido, que semanas atrás lutava para vencer a cláusula de barreira de 5%.
Agora, alguns levantamentos já mostram A Esquerda com 9%, o que poderia dar à Alemanha um governo muito mais progressista do que hoje se imagina possível. Ainda assim, negociações com os partidos mais tradicionais poderiam ser difíceis dadas as posições de campanha da sigla, que incluem defesa da imigração e a proposta de derrubar o teto de gastos da Alemanha para aumentar gastos públicos.
Coalizão Bahamas
Uma aliança entre a CDU e AfD, que têm as cores azul-claro e preto da bandeira do país caribenho, representaria a volta da extrema direita ao poder na Alemanha 80 anos depois do fim do nazismo. Seria um acontecimento político com consequências ainda difíceis de mensurar, até mesmo porque a CDU de Merz repete a quem quiser ouvir que não fará governo com os extremistas.
O problema é que mais da metade do eleitorado já não acredita nessa promessa depois que o candidato conservador orientou seu partido a aprovar uma lei, com o apoio da AfD, restringindo a imigração na Alemanha —na votação seguinte, graças à oposição de alguns poucos parlamentares da CDU, a proposta foi derrotada.
Uma Coalizão Bahamas parece impensável por enquanto, mas a Alemanha vê hoje seu vizinho germânico, a Áustria, trilhar um caminho que pode servir de alerta. Após eleições acirradas em setembro de 2024, partidos de centro-direita e centro-esquerda tentaram entrar em acordo para governar, mas as negociações falharam: o presidente do partido conservador renunciou e, com sua saída, abriu caminho para uma coalizão entre seu partido e o FPÖ, de ultradireita.
Hoje, Viena encontra-se em limbo político depois que as negociações entre o FPÖ e o partido conservador ÖVP também falharam. A Alemanha está distante desse cenário por enquanto —mas o fato de que ele é discutido na imprensa e pelas esferas políticas do país mostram que 1933 pode não ser uma comparação tão descabida.