Atrocidades russas na Ucrânia não devem ser relativizadas – 26/02/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] O artigo critica a desinformação e as análises enviesadas sobre a guerra da Ucrânia. Aborda o impacto da agressão russa, a dinâmica da Otan e os dilemas do povo ucraniano entre paz e justiça. No terceiro aniversário do conflito, o autor defende que a academia e o jornalismo devem condenar o imperialismo de qualquer potência, sem relativização ou seletividade moral.

Em uma guerra não há neutralidade. Todo pesquisador e jornalista tem a sua própria visão de mundo. A neutralidade já foi, há tempo, reconhecida como uma utopia nas ciências sociais. A verdadeira ameaça para a ciência, contudo, não está na ausência de neutralidade, mas na falta de objetividade e compromisso com a justiça.

Nos últimos anos, vimos como o negacionismo e a desinformação sobre as vacinas tiveram um impacto avassalador na saúde pública. Desde o início da invasão russa de larga escala na Ucrânia em 2022, é notável que a desinformação não se limitou à esfera da saúde, mas também alcançou as análises políticas e internacionais na academia e no jornalismo. Há vários motivos que os explicam.

Em primeiro lugar, no Brasil temos um número considerável de russianistas (pesquisadores e jornalistas que estudam a língua, história e política da Rússia), mas pouquíssimos ucranianistas. Quando começou a guerra, as principais análises sobre o conflito foram feitas por russianistas, muitas vezes alicerçados em perspectivas e fontes pró-Kremlin, sem conceder espaço às vozes ucranianas. Há uma visão “russofílica”, em que a Rússia é percebida sempre como a vítima, e nunca como algoz —a despeito de sua expansão territorial, colonização, deportação de minorias e etnocídio nos últimos séculos (vide a sua imensidão).

Em segundo, há uma romantização de que a Rússia contemporânea representa o resgate de um passado soviético idealizado, ignorando os posicionamentos de Vladimir Putin alinhados à extrema direita e ao neofascismo. Vale lembrar que o Partido Comunista da Federação Russa, muito influente nos anos 1990, foi um dos grupos políticos mais enfraquecidos pela consolidação de Putin no poder.

Por fim, a perspectiva de que, por Putin se opor aos EUA, devemos apoiá-lo a qualquer custo —independentemente de seu posicionamento neofascista e das atrocidades que venha a cometer dentro e fora da Rússia.

As narrativas da “guerra justa” de Putin têm ampla repercussão no Brasil e no Sul Global, como o mito de que a invasão foi uma estratégia de defesa contra o expansionismo da Otan. Em nenhum momento a Ucrânia esteve prestes a entrar na Otan.

Uma declaração foi feita em 2008 na Conferência de Bucareste, mas nenhum passo concreto foi dado. Havia espaço para barganhas e negociações. A invasão de 2022 só deu ímpeto e legitimação para o aumento da aliança, abrangendo países (Finlândia e Suécia) que historicamente eram contrários à adesão. Sua fronteira terrestre com a Rússia mais do que dobrou desde então; a Rússia não está mais segura hoje do que antes da guerra.

Argumenta-se também que, embora a Ucrânia não tivesse perspectivas de entrar na Otan, a Otan já havia entrado na Ucrânia. Outro grande mito. A cooperação entre a Ucrânia e a Otan existe desde os anos 1990, mas muito limitada, em parte por um temor de países da aliança em não provocar a Rússia.

Quando a invasão de larga escala teve início em 2022, uma das grandes dificuldades da Ucrânia era o fato de o seu armamento ser majoritariamente soviético. As munições ocidentais eram incompatíveis. Levou tempo para que a Otan de fato fornecesse novas armas ao país. O fornecimento foi gradual, sempre com a cautela de não provocar Putin, o que seguramente prejudicou o desempenho ucraniano no front em momentos decisivos.

Durante a primeira invasão russa na Ucrânia, de 2014 até 2022, o “Ocidente coletivo” (termo usado pelo Kremlin) teve uma política altamente complacente com Putin. As inúmeras “notas de repúdio” e sanções adotadas até então tinham efeito mais simbólico; o comércio, o diálogo político e os acordos de cooperação econômica com a Rússia se mantiveram sem grandes abalos. A Ucrânia não deu um único tiro durante a anexação da Crimeia. Tudo isso por uma preocupação em não “provocar” Putin. Certamente, essa complacência sinalizou uma luz verde para Putin incorrer em novas investidas e agressões.

Pouco se questionam os motivos pelos quais a Ucrânia, muito mais cercada por tropas russas do que a Rússia por tropas da Otan, buscou ao longo dos anos se integrar à aliança. As posições na sociedade ucraniana foram por muito tempo majoritariamente desfavoráveis à aliança. Em 2014, com a invasão russa na Crimeia e no Donbass, isso mudou rapidamente, atingindo um ápice favorável durante a invasão de 2022.

Em outras palavras, a agressão de Putin empurrou a Ucrânia para os braços dos EUA e da Otan, e não o contrário. Muitos ucranianos se veem hoje em uma guerra de independência, em um processo que já perdura décadas e até mesmo séculos. Historicamente, fomos o quintal imperial dos EUA, assim como o Leste Europeu foi o quintal imperial da Rússia.

Outro argumento frequentemente mobilizado é que a invasão russa seria também motivada pela presença de grupos paramilitares neonazistas na Ucrânia a partir de 2014. Ignora-se, contudo, a presença de grupos paramilitares e lideranças neonazistas na própria Rússia.

Sem falar das similaridades do regime Putin com o nazifascismo, tais como: a mobilização nacionalista; exaltação militarista; expansionismo territorial; manipulação eleitoral; demonização, perseguição e execução de opositores; controle total dos meios de comunicação; capitalismo corporativista oligárquico; instrumentalização política da religião; defesa de valores conservadores e da “família tradicional” frente à “decadência” dos “valores ocidentais” (uma referência do regime a movimentos LGBTQIA+ e ao feminismo); e mesmo o etnocídio, em suas investida para apagar a Ucrânia como Estado e nação.

O debate decolonial, muito caro na academia brasileira, é um tema praticamente vetado e criminalizado na Rússia no que diz respeito aos diversos povos colonizados no próprio país. O mesmo ocorre com a discussão do racismo estrutural na sociedade russa.

É muito notável os “dois pesos e duas medidas” dos EUA e de muitas potências ocidentais em se solidarizar com a Ucrânia e ignorar os crimes de guerra e genocídio cometidos por Binyamin Netanyahu contra o povo palestino.

Ao mesmo tempo, nos meios aqui mencionados é também notável os “dois pesos” em se solidarizar com a Palestina e ignorar os mesmos crimes e atos terroristas praticados por Putin contra a Ucrânia. A morte de crianças ucranianas, os ataques a hospitais, escolas, universidades, áreas residenciais e instalações de energia são vistos como meros efeitos colaterais de uma guerra justa contra “nazistas” ou “fantoches” e “palhaços” nas mãos da Otan.

Cada vez mais, a vida e a morte têm valores diferentes dependendo do lado em que você está do conflito. No início da guerra, não foram raras as menções a fake news de que os ucranianos estariam simulando auto bombardeios e massacres para difamar o exército russo. Neste jornal já se falou em “russofobia”, mas a “ucranianofobia” está também presente em muitas análises.

Muitos se sensibilizam com os horrores perpetuados ao longo de 21 anos pela nossa ditadura militar, muito bem expostos no filme “Ainda Estou Aqui”, mas não têm qualquer empatia às milhares de vítimas de 25 anos de autoritarismo de Putin, marcado por assassinatos, envenenamentos, repressão e tortura.

O enorme aparato de vigilância e repressão do Serviço Federal de Segurança (FSB), junto a outros órgãos, surpreenderia até mesmo o nosso DOI-Codi . A guerra na Ucrânia nada mais é que a transposição para o exterior de um modus operandi violento praticado por Putin na própria Rússia —a eliminação de todos aqueles que não se submetem à sua vontade. Os mesmos instrumentos de opressão são hoje replicados nos territórios ocupados na Ucrânia.

Violência e conflitos armados foram um dos seus pilares de sustentação desde o princípio. Seu primeiro impulso de legitimidade nacionalista foi a Segunda Guerra da Chechênia (1999-2009). Quando a “ameaça chechena” foi “resolvida”, seu regime precisou recorrer a novas ameaças e conflitos para manter a legitimidade e, sobretudo, sua imagem como um herói e único líder capaz de garantir segurança à Rússia frente a seus inúmeros “inimigos”.

Isso explica em grande medida a atual guerra e sinaliza que talvez essa não seja a última guerra que ele está disposto a travar. Em grande medida, a guerra na Ucrânia é uma continuação da guerra na Chechênia.

Putin foi um dos pioneiros da nova onda de autoritarismo do século 21. Não à toa, líderes como Trump, Bolsonaro, Le Pen e Orban o têm com grande estima. Além das inclinações neofascistas, todos (como também foi o caso da nossa ditadura e de Netanyahu) têm em comum a narrativa de que a nação está sob a ameaça existencial de diferentes inimigos internos e/ou externos e que só um líder “forte” é capaz de garantir segurança, ordem e estabilidade.

Há muitas críticas que poderíamos fazer a Volodimir Zelenski e às elites ucranianas. No entanto, a maioria das críticas é frequentemente levantada não por uma real preocupação com o povo ucraniano e o futuro da Ucrânia, mas em uma busca de fundamentar e legitimar a agressão russa. Argumenta-se que “Zelenski não quer a paz” e que poderia ter negociado em diferentes ocasiões, mas ignora-se que a Ucrânia estava e continua frente a um verdadeiro dilema entre paz e justiça.

A busca por justiça deve ser feita a qualquer custo, mesmo que isso incorra em mais perdas humanas? Ou a paz deve ser perseguida a qualquer custo, mesmo que isso leve à consolidação de inúmeras injustiças? Essa não é uma escolha fácil e cabe ao povo ucraniano decidir, não a nós. A Palestina deve aceitar a anexação dos territórios ocupados na Cisjordânia para ter paz?

Com a ascensão de Trump e a sua simpatia a Putin, a Ucrânia está em um beco sem saída. Provavelmente, não terá outro caminho a não ser firmar um acordo extremamente desfavorável, imposto por dois impérios. A exclusão da Ucrânia das negociações é uma evidência dessa tragédia.

Quais são as garantias de que Putin respeitará um acordo de paz e não lançará novas investidas? Recentemente vimos como ele “respeitou” o acordo com o seu ex-capataz no grupo Wagner, Ievguêni Prigojin. Ao invadir a Ucrânia em 2014, Putin rasgou o acordo de Budapeste de 1994, segundo o qual (por pressão dos EUA) a Ucrânia transferiu o seu arsenal nuclear soviético à Rússia, em troca de garantias de segurança.

O que Putin semeou até agora? Algumas estimativas apontam para mais de 100 mil ucranianos mortos e 70 mil russos —números que podem estar muito subestimados. Há ainda centenas de milhares de mutilados e traumatizados em ambos os lados, sobretudo jovens. Em dois países com a população envelhecida, os custos materiais e (principalmente) imateriais da guerra perdurarão por muito tempo.

Há cerca de 5 milhões de deslocados internos na Ucrânia e 6 milhões de refugiados no exterior (mais de 25% da população), a maioria dos quais são cidadãos dos territórios ocupados que tiveram suas vidas arruinadas pela guerra. Assim como nos conflitos no Oriente Médio, os ressentimentos ucranianos não serão facilmente esquecidos, tornando qualquer perspectiva de paz duradoura muito improvável.

Por fim, muito se discorre sobre a “nova ordem mundial”. O fim da hegemonia estadunidense representa uma real oportunidade para a consolidação de uma ordem multipolar e multilateral, mais democrática e benéfica ao Brasil. No entanto, não está claro se realmente seguimos nesse rumo.

A guerra imperialista da Rússia traz profundos questionamentos. Estamos de fato migrando para uma “nova ordem” ou estamos mantendo a mesma ordem colonial, com as mesmas práticas e estruturas globais de opressão política e econômica, mas com novos “senhores” na cúpula do poder?

A academia e o jornalismo devem ter como fundamento a busca da justiça —social, racial, de gênero, ambiental, dentre outras. Não devem se prestar ao serviço de legitimar agressões e crimes de guerra. O imperialismo deve ser condenado, independentemente de quem o pratique —seja pelos EUA, pela Rússia ou por qualquer outra potência.

O ex-presidente do México, Porfírio Díaz, certa vez declarou: “Pobre México. Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”. O mesmo podemos concluir: “Pobre Ucrânia. Tão longe de Deus e tão perto da Rússia”.