Argentina de Milei flerta com autocracia, diz socióloga – 14/03/2025 – Mundo

Decana da sociologia argentina, Liliana De Riz acende a luz vermelha para a qualidade da democracia no país. Ela diz que Javier Milei demonstra afinidade com autocracias, mas também não poupa críticas aos opositores. Mais de um ano após a posse do economista, De Riz afirma que não há hoje oposição capaz de enfrentar o presidente.

Ela falou à reportagem em seu apartamento em Buenos Aires antes de lançar seu novo livro, “Laboratório Político Milei” (ed. Planeta), sem versão em português, no qual apresenta uma radiografia do primeiro ano do governo e do que representa a ascensão política do ultraliberal.

Em que momento está Javier Milei?

Em um divisor de águas. Embora a inflação tenha diminuído, e isso seja um êxito, as reformas prometidas estão muito bloqueadas. O governo não tem divisas e tem dívidas enormes. Não sai do controle cambial por medo de que a inflação retorne, mas esse controle cambial, por sua vez, bloqueia investimentos. Tem a negociação em curso com o FMI, mas quanto o Fundo vai dar?

Se considerarmos os eventos desfavoráveis que poderiam ocorrer, que são tão possíveis quanto os favoráveis ou talvez mais prováveis, o governo caminha em um fio muito fino. Há um alívio, uma queda na pobreza, mas o que não se vê é uma reativação suficiente porque este é um país que tem uma taxa de informalidade enorme [45,3%]. Estamos atravessando o [rio] Jordão. Não sei se chegamos ou se não chegamos. Isso me inquieta.

Qual foi o impacto real do criptogate [escândalo que envolve a criptomoeda $Libra divulgada pelo presidente]?

É muito cedo para prever o impacto, embora tenha havido, porque é uma ferida que este governo tem em sua ascensão triunfante. Há um processo nos EUA, o que acredito que tem consequências mais complicadas. Mas, enquanto o lado econômico estiver tranquilo, pode-se controlar bastante.

Apesar do criptogate, se não surgirem outras feridas, e como a oposição não mostrou até agora nenhuma capacidade de ser alternativa, é provável que, apesar do descontentamento de muitos eleitores, eles votem em Milei.

Muitos argentinos dizem aceitar o aumento no custo de vida porque “é preciso um sacrifício”. De onde vem essa ideia?

Vem de longe. Quando tivemos crise de 2000, falava-se em aguentar: “Estamos mal, mas temos que aguentar”. Isso volta agora com a ideia de que pior não podemos ficar porque o kirchnerismo nos levou a uma situação limite.

São quatro décadas de uma democracia que sempre deixou pendente uma mudança de modelo produtivo que pudesse ser compatível: crescer e distribuir. Aqui se distribuiu quando o vento de cauda era favorável. Quando o vento é desfavorável, a partir de 2007, adeus. A distribuição é feita com base na emissão monetária e no déficit.

A senhora também trabalha com uma ideia de hiperindividualismo que levou a Milei. Pode explicar?

Para mim é uma convergência de fatores. Por um lado, a escandalosa quarentena que deixou na rua, à própria sorte, todo trabalhador autônomo, fechou as escolas. Uma situação muito crítica que expandiu o uso da internet e das redes como único interlocutor da sua vida. Ao carecer de contato social, de vínculo com o Estado e o público, as pessoas dizem “me viro como posso.”

A festa de Olivos [celebração na residência presidencial na gestão de Alberto Fernández em meio a rígida quarentena] teve um impacto fenomenal. Tudo isso com um governo fantoche que já ninguém duvidava que era uma cleptocracia porque roubavam a quatro mãos.

Este panorama social é uma sociedade terrivelmente fraturada. A classe operária desaparece, há uma indústria subsidiada e um Estado colonizado pelos interesses. E há as redes, que formam tribos. Há uma raiva que cresce como uma panela de pressão entre uma liderança política corrupta e ostentosa e uma população empobrecida que, além disso, tem pânico de continuar caindo.

Então, nessa população núcleo duro do seu eleitorado, Milei irrompeu como um show lotado. Agora vai acontecer o mesmo em 2025 [há eleições legislativas em outubro para renovar um terço do Congresso].

Por qual razão?

Porque enquanto a oposição não kirchnerista não se renovar, não vai haver uma frente antimileísta relativamente republicana e viável. As pessoas não votam no kirchnerismo.

O que é que mantém o presidente com níveis de aprovação altos?

Tem a ver com uma nova maneira de se relacionar nesta sociedade. As pessoas suportam o que é impensável na minha geração, esses insultos e essa linguagem de Milei. Todo esse espetáculo estranhíssimo é muito novo. O que te diz muita gente? “Ele faz o que diz. É um bom rapaz. Não nos engana.” Há a ideia de que isso é credibilidade. Acreditam nele porque o encontram totalmente diferente de tudo o que conhecem.

O governo tem uma ideia extrema de lealdade. Se alguém critica ou contraria, é mandado embora.

É uma obediência de vida, sem espaço para discussão e consciência. O que acontece é que as pessoas pensam que ser democrático é votar e ponto. E têm uma tolerância à corrupção, à não divisão de poderes. Esta sociedade tem uma longa tradição autoritária.

Estamos diante de um monstrinho, muito autoritário em seus comportamentos e muito pragmático na hora de negociar. E muito astuto porque negocia alianças instáveis individualmente.

É uma combinação de instrução criadora, como quis fazer [Carlos] Menem [presidente de 1989 a 1999, morto em 2021], com isso que chama de batalha cultural. Essa novidade do wokismo de direita, uma espécie de revival ao reacionário dos costumes tradicionais. As duas coisas juntas o aproximam muito ao original peronismo nacionalista católico da Argentina. Ele está adaptando o menemismo à onda da ultradireita neste mundo.

Além de não estar articulada, a oposição tem escândalos morais. Cristina por corrupção, Alberto Fernández por violência de gênero.

Enquanto o kirchnerismo continuar como força fundamental, as pessoas não votam na oposição, não querem que eles voltem. Isso é uma vantagem extraordinária para Milei. Porque ele quer que esse antimileísmo seja sobretudo o peronismo kirchnerista. Enquanto isso está sugando peronistas a quatro mãos no Congresso.

Quem poderia ter força?

Te digo isso desolada: a Argentina é uma federação de partidos provinciais unidos no plano nacional por conveniência. Em cada jurisdição os partidos se organizam de maneira diferente. Não há uma linha nacional. Isso é grave. São partidos sem perfil.

É custoso, mas hoje o governo consegue aprovar algumas de suas coisas no Congresso como nas alianças ad hoc, ocasionais. Pode se sustentar assim no longo prazo?

A chave do sistema político argentino é o federalismo fiscal. E Milei deixou de enviar dinheiro para as províncias, com total arbitrariedade. Assim como, com a arbitrariedade, outros presidentes davam mais a uma que a outra. Agora é a cenoura: “não te dou se você não fizer isso, e ninguém pode me obrigar a te dar”.

Como qualificar a democracia na Argentina hoje em dia?

Como a qualificava durante o kirchnerismo? Um regime de eleições livres e limpas, que consagrava reiteradamente um governo que é manifestamente corrupto, que viola a divisão de poderes e que vive de uma inflação como modus vivendi à custa de ter levado a pobreza a 40%. Isso era uma democracia? Não, era uma cleptocracia.

E agora? Agora meu temor é a autocracia. Não digo hoje. Mas eu termino o livro dizendo, “neste país a liberdade avança e a liberdade afunda” [o partido de Milei chama Liberdade Avança]. É um aviso que me angustia muito porque eu acredito que Milei é um tipo de liderança para o qual as instituições são restrições, e ele não as suporta. Toda restrição deve ser obstaculizada.


Raio-X | Liliana De Riz, 83

Nascida na capital Buenos Aires, é doutora em sociologia pela Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais de Paris, pesquisadora sênior do Conselho Nacional de Pesquisa Científica da Argentina e membro titular da Academia Nacional de Ciências Morais e Políticas. Acaba de lançar “Laboratório Político Milei” (ed. Planeta), sem versão no Brasil.