A ordem internacional, cujos cânones estabelecidos ao fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 foram atualizados com a implosão da União Soviética em 1991, está em franca mutação.
Não há datas exatas de marcação, mas é possível argumentar que os historiadores do futuro olharão para o segundo mandato de Donald Trump com atenção. O republicano é a epítome da volta a um regime de força nas relações globais.
Um marco decisivo dessa realidade fará três anos no dia 24: a invasão russa da Ucrânia. Ali, após passar mais de duas décadas denunciando o que percebe como injustiça do Ocidente ao abocanhar sua antiga área de influência no Leste Europeu, Vladimir Putin resolveu ir às vias de fato.
Fracassou em subjugar a Ucrânia, por deméritos de suas Forças Armadas e virtudes do apoio ocidental a Kiev, mas nem tampouco foi derrotado. Deverá, ao que transparece do rumo das negociações sugerido por Trump para a paz, sair da guerra com os 20% que tomou do vizinho no bolso.
Por óbvio, é um processo ainda incipiente, mas os sinais são de que Kiev terá de aceitar algum tipo de neutralidade, além da perda territorial. E Putin talvez possa celebrar o dia da vitória na Segunda Guerra, o mais sagrado de seu calendário, posando de vencedor ao lado de aliados como Xi Jinping e Lula.
Trump, fiador desse futuro eventual, exemplifica ao mesmo tempo o realismo e o cinismo dessa nova ordem, a depender da opinião dos afetados.
O caso da Otan, que desde o primeiro mandato era um de seus alvos prediletos, é emblemático. Antes de assumir, o presidente causou espanto ao sugerir que poderia empregar força militar tanto para retomar o canal do Panamá quanto para forçar a Dinamarca a lhe ceder ou vender a Groenlândia.
A ilha estratégica, cheia dos minerais que fazem brilhar os olhos de Trump, estava na mira americana havia décadas. Ocorre que a Dinamarca é parte da Otan.
Segundo o 5º dos 14 artigos de sua carta fundadora, a organização como um todo deve vir em socorro de um membro sob ataque. Isso não dissuadiu totalmente seus membros de se estranharem, mais notadamente a disputa entre Turquia e Grécia sobre Chipre e arredores, mas certamente evitou escaladas.
Assim, ao ameaçar a Dinamarca, que de pronto achou US$ 2 bilhões em seus cofres para reforçar a defesa do seu território autônomo no Ártico, Trump ignorou esse pilar da Otan.
Ao mesmo tempo, o usou como um dos motivos para rejeitar a entrada a Ucrânia na entidade, como já havia insinuado antes e agora explicitado na conversa que teve com Putin na quarta (12).
Defensores do americano lembrarão que, na prática, o argumento russo contra a adesão de Kiev ao clube já era respeitado em Washington e Bruxelas desde que o mesmo Putin esbravejou contra o convite feito aos ucranianos e aos georgianos em 2008 pela Otan, resultando em duas guerras.
No caso da guerra entre Israel e Hamas, o empenho da palavra foi ainda mais ligeiro. Trump abençoou o cessar-fogo que o permitiu assumir sem explosões na Faixa de Gaza só para rasgar os termos do acordo, fazer um ultimato aos terroristas e ainda dizer que quer o local para si —sem os palestinos.
Novamente, Trump esquece os termos reconhecidos pela ONU que foram selados no jardim da mesma Casa Branca que ora ocupa, em 1994, e muda a regra com o jogo andando. Seu detratores falam em limpeza étnica; apoiadores, numa saída criativa para um problema insolúvel.
Na outra grande fronteira de sua política externa, a guerra tarifária, o presidente tem mirado a China, mas por ora atingido com mais força parceiros menos capazes, com efeitos ainda incertos.
Quando a Colômbia, aliada histórica de Washington e parceira num tratado de livre comércio, resolveu recusar voos com deportados, Trump sacou a elevação de alíquotas de importação e dobrou Bogotá em questão de horas.
Com esses lances iniciais, observadores menos emotivos supõem, baseados nos princípios de negociação que o próprio Trump divulgou em um livro de 1987, que o americano apenas bagunça o tabuleiro para tentar rearranjar as peças mais ou menos a seu gosto.
Em seu favor, há a impunidade relativa da qual desfruta, como escreveu nesta quinta (13) o papa da geopolítica americana, George Friedman, aos assinantes de sua consultoria. Apesar de todo discurso de decadência, diz, os EUA ainda são hegemônicos na prática. A China enfrenta problemas econômicos estruturais, a Europa está fragmentada e a Rússia, atolada na sua guerra.
No caso do canal do Panamá, por exemplo, Trump ignorou o acordo assinado pelos EUA que deu o controle da obra feita por americanos ao governo local, processo encerrado em 1999. Ameaçou usar a força e ganhou em troca o rompimento da relação próxima que se desenhava entre o país da América Central e a rival China.
Já a disputa com o Canadá, que começou com a sugestão de uma anexação, segue em banho-maria.
A coisa fica mais complexa quando o assunto é a política doméstica. A crescente sugestão de que seu governo tentará alienar o Judiciário equivale a um rompimento institucional inaudito.