Ao longo de seus anos na política, os discursos de Donald Trump sempre apresentaram pontos em comum, sendo apresentados de forma mais ou menos eficaz para energizar os grupos focais que se tornaram sua base de apoio.
São eles os operários e agricultores que se viam ameaçados pela globalização, classes baixas urbanas e, no fim da estrada, os políticos do Partido Republicano —que de uma sigla conflagrada quando o empresário virou candidato em 2016 passou agora a um exemplo de ordem unida.
A esses segmentos, a apresentação em “loop” de exageros, distorções e mentiras é irrelevante ante o objetivo maior de “fazer os EUA grandiosos novamente”, aspas obrigatórias. Se a guerra tarifária arrisca carestia para essas mesmas pessoas, é um teste de realidade ainda a ver.
A carreira de Trump como orador também é irregular, alternando momentos em que destruiu adversários, como no debate do ano passado em que foi ferida de morte a candidatura de Joe Biden, e exposições longas e incoerentes, como quando aceitou sua candidatura logo após sofrer um atentado.
Em sua reestreia no Congresso, com a primeira fala aos parlamentares de seu segundo mandato na noite de terça (4), o presidente ofereceu uma aula magna do populismo que o levou até ali.
Exagerou, distorceu e mentiu, como não poderia de deixar de ser, mas fez uma apresentação afiada. Apesar de ser a mais longa da história moderna, com 100 minutos, Trump não se perdeu nas divagações por ter seguido o roteiro escrito.
Ao mesmo tempo, inseriu elementos do seu tempo de apresentador de reality show, transformando o plenário da Câmara dos Representantes em palco de programa de auditório. Havia criancinha doente, casos de superação, até um anúncio de prisão de terrorista com parente de vítima presente.
Houve a usual admoestação da gestão democrata e a reafirmação de sua política externa agressiva, ainda que sem foco definido. Trump pôde apresentar a carta com a genuflexão de Volodimir Zelenski após a humilhação imposta ao ucraniano no encontro de sexta (28) na Casa Branca e a subsequente suspensão da ajuda americana a Kiev contra os russos.
Toda sua agenda foi desfilada. Novamente, a guerra tarifária pode dar bastante errado para Trump, mas neste momento é sua bandeira nacionalista, emparelhada com a troca do papel dos EUA de policial para “bully” global.
O Panamá tem motivos para se preocupar, e certamente a volta da Groenlândia a seu cardápio, “de um jeito ou de outro”, só vai azedar ainda mais as relações esgarçadas com a Europa e a Otan. Mas sua base, e os republicanos presentes, acham o máximo.
Por óbvio, nada disso não colou com quase metade dos presentes, os democratas, que permaneceram obsequiosamente sentados e, salvo algumas intercorrências, se manifestaram apenas por meio de plaquinhas com muxoxos.
É o retrato da nação que mais desagrada Trump: apesar de ele ter tido enfim uma vitória com maioria no voto popular em 2024 e controlar as duas Casas do Congresso, o republicano presidente um país cindido mesmo que fale em triunfo avassalador. Venceu Kamala Harris por 1,5 ponto percentual a mais, uma dinâmica não muito diferente daquela encontrada no Brasil de seu pupilo Jair Bolsonaro (PL).
Por fim, a subversão institucional que é encarnada no Doge, o departamento criado para Elon Musk teoricamente tornar o governo mais eficiente. O bilionário teve de se aboletar no cercadinho dos familiares de Trump, dado que não é congressista nem tem cargo no gabinete, o que por si aponta a anomalia de sua existência.
O impacto das medidas de Musk, contudo, é bem real. Se o governo teve US$ 1,6 trilhão de déficit no ano passado e há sectarismo em diversos níveis, não há dúvida e contenção é bem-vinda quando não se substitui um fanatismo por outro. Mas o que e como fazer os cortes é importante, e novamente a realidade se encarregará de mostrar o que vai acontecer.
Enquanto isso, Trump seguirá com seu show, com metade da plateia protestando por ora em silêncio.