Covid: Bérgamo, na Itália, ainda lida com trauma de 2020 – 21/02/2025 – Equilíbrio e Saúde

“Naquela época se dizia ‘vai dar tudo certo’, ‘sairemos disso melhores’, mas infelizmente não foi assim. Não deu nada certo”, diz dom Mario Carminati, 68, padre de Seriate, na província de Bérgamo, norte da Itália. “As pessoas parecem ter aprendido algo sobre o medo, mas não foram além.”

Há cinco anos, a província foi a mais afetada pela chegada da Covid-19 ao país. Após o primeiro caso de contaminação interna ter sido confirmado em outra cidade do norte, em 20 de fevereiro de 2020 descobriu-se, quando os testes começaram a ser aplicados, que milhares de pessoas já estavam contagiadas. Em 9 de março o governo decretou um lockdown nacional, um dos primeiros do mundo, para tentar conter a circulação do vírus.

Na região de Bérgamo, no entanto, o estrago já estava em curso. Com tantos infectados em pouco tempo, hospitais colapsaram, seguidos pelo sistema funerário, com dezenas de mortos por dia. Em 2020 foram 16,2 mil óbitos na província, 60% a mais do que a média entre 2015 e 2019.

Hoje se fala pouco de Covid-19 por ali, segundo dom Mario, ainda que as sequelas na comunidade persistam. Entre os jovens, ele observa um crescente sentimento de insegurança, notável, por exemplo, com o aumento de casos de anorexia. Na outra ponta, o medo continua a rondar os idosos.

“Tem gente que está em casa desde então, que sai pouquíssimo. Temem quando começa a [temporada de] gripe”, afirma à Folha.

E tem o luto de familiares, agravado pelo fato de não terem podido, em muitos casos, rever parentes levados de ambulância para hospitais e que, dias depois, morreram. Sem possibilidade de despedidas ou ritos religiosos, como a unção dos enfermos.

Daquela época, dom Mario se lembra dos caixões que abrigou na igreja de San Giuseppe: cerca de 270 ao todo, em pouco mais de um mês. Sem espaço nos crematórios locais, foram levados para lá, à espera do transporte para outras cidades. Em 18 de março, girou o mundo o vídeo que mostrava caminhões militares, carregados com caixões, saindo em fila de Bérgamo. A data passou a ser celebrada como Dia Nacional das Vítimas da Covid-19.

Foi o que aconteceu com o pai da professora Cassandra Locati, Vincenzo, morto aos 78 anos por uma pneumonia bilateral relacionada à Covid. “Recebemos um telefonema da clínica com o aviso de que ele não tinha resistido. E aí teve início outro calvário: descobrir onde estava o corpo”, diz.

Após uma série de telefonemas, a família soube que o caixão tinha ido para uma igreja de Bérgamo e, mais tarde, para Florença, onde foi cremado –as cinzas, depois, foram enviadas à família.

Nessa época, Locati criou um blog para compartilhar sua história, origem da Associação Serenos e Sempre Unidos, que reúne uma centena de parentes de vítimas da pandemia. Além de iniciativas para promover a memória daquela primeira fase, o grupo atua no âmbito judicial, com ações de causa civil e penal, em busca de reparação.

“A explicação dada pelos governantes da época é que se tratou de um tsunami. Mas, depois de cinco anos de pesquisas e análises, inclusive de autoridades judiciais, a explicação é que a Itália não estava preparada”, afirma a advogada Consuelo Locati, irmã de Cassandra, representante legal de cerca de 650 famílias.

Na visão da advogada, duas são as razões para que a região tenha sido a mais afetada. O país não possuía um plano adequado e atualizado de atuação em casos de pandemia e, por motivos econômicos, não foi implementada uma zona de quarentena obrigatória nos principais focos de contaminação da área de Bérgamo, como aconteceu em outras cidades antes do lockdown nacional.

A gestão da emergência sanitária é, desde setembro, alvo de uma comissão de inquérito no Parlamento. Em 2020, o governo era comandado pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte, hoje deputado de oposição ao governo de Giorgia Meloni.

Para o virologista Fabrizio Pregliasco, professor da Universidade de Milão e diretor sanitário do hospital Galeazzi, o caso de Bérgamo foi uma “devastação”, ligada às características da área, uma das mais industrializadas da Itália. Havia uma proximidade grande entre empresas da província com Wuhan, na China, a primeira a ser atingida pelo coronavírus.

Com o vaivém de pessoas entre as duas áreas, o vírus ancestral teria chegado diretamente a Bérgamo e se espalhado antes que fossem massificados os testes e o isolamento dos casos positivos. “Ali houve uma difusão imediata, rápida, ampla, com enorme número de casos. Muitos pioraram porque não havia possibilidade de assistência”, diz Pregliasco.

“Hoje é fácil dizer que teria sido melhor fazer isso ou aquilo, mas naquele momento de emergência as decisões políticas ocorriam com pouco conhecimento científico e em meio à dificuldade de mediar aspectos de saúde, psicossociais e econômicos”, acrescenta.

Para o professor, um dos legados da Covid-19 na Itália é que, ao menos do ponto de vista científico, o país está mais preparado. Criou-se uma abordagem transversal entre estruturas sanitárias, inclusive internacionais, com mais capacidade de comunicação e compartilhamento de dados.

Por outro lado, restou uma parcela da população que parece ter esquecido ou que nega o que aconteceu há cinco anos. “É uma coisa triste, um certo negacionismo, um revisionismo a respeito daquilo que foi feito, com afirmações como ‘foi exagerado’, ‘as vacinas não eram necessárias’. Inclusive com o envolvimento de forças políticas que se aproveitaram dessa dissidência”, avalia Pregliasco.

No Cemitério Monumental de Bérgamo, a ala B1 foi aberta em janeiro de 2020, antes da pandemia, com capacidade para receber 80 túmulos pelos dois anos seguintes. No fim de março, já estava lotada. São fileiras inteiras de mortos em datas próximas.

Saindo dali, a reportagem encontrou, nos muros da vizinhança, duas pichações de aspecto antigo: “Astra Zeneca assassini [assassinos]”, em referência à fabricante de vacina, e “No green pass”, contra o passaporte imunitário da União Europeia, instituído em 2021.