A virulência do ataque de Donald Trump a Volodimir Zelenski pegou de surpresa o presidente russo, Vladimir Putin, que não esperava um alinhamento tão automático do novo chefe da Casa Branca à sua visão acerca da Guerra da Ucrânia.
Isso dito, segundo a reportagem ouviu de duas pessoas com trânsito no centro do poder da Rússia, o Kremlin mantém cautela nas negociações, temendo que a abertura do americano esconda alguma cláusula desfavorável aos russos ou que tente afastar Moscou de sua aliança com Pequim.
Como a Folha havia mostrado na semana passada, o Kremlin se queixava excesso de interlocutores buscando contato em nome de Trump para falar de Ucrânia desde que o republicano chegou ao poder, há um mês.
Houve uma ordem de corte de contatos, pois os russos perceberam que não havia um plano estruturado do lado dos EUA. Segundo negociadores, a retórica da abordagem parecia muito próxima da empregada pelos ucranianos, e Zelenski estava namorando a ideia de trocar apoio por riquezas minerais de seu país.
Na quarta retrasada (12), tudo mudou com a entrada em campo de Trump, que ligou para Putin e ficou uma hoa e meia ao telefone com o russo. Saiu da conversa falando em “putinês”: a Ucrânia não poderia entrar na Otan e deveria admitir perdas territoriais.
Na terça (18), negociadores russos e americanos se encontravam na Arábia Saudita, ignorando os ucranianos e esnobando os europeus.
Mas foi o dia seguinte que impressionou de vez o Kremlin. Incomodado por ter sido acusado por Zelenski de ajudar Putin a sair do isolamento e de viver numa “bolha desinformativa”, Trump lançou um violento ataque ao ucraniano, chamando-o de “ditador sem eleições” e exigindo que tope o que lhe for oferecido.
Até aqui, como disse o radical ex-presidente Dmitri Medvedev, “nem em sonhos” a liderança russa poderia prever tal guinada. Mas, segundo os observadores que falaram anonimamente com a Folha, aí que começam as desconfianças no Kremlin.
Há o temor de que Trump acabe por embutir exigências que não digam respeito à Ucrânia, mas sim a vantagens comerciais na relação com a Rússia. Uma das pessoas ouvidas diz que Putin se considera mais esperto que o americano, e que o inverso é verdade.
Nesse jogo, até aqui o russo tem levado a melhor naquilo que transparece ao público. Mas a menção a possibilidades econômicas, feita pelos chefes de delegação em Riad, Serguei Lavrov e Marco Rubio, pode ir além de bons negócios.
Primeiro, Trump quer mais entrada na formulação global de preços de petróleo, item em que a Rússia joga em tabela com a Arábia Saudita, não por acaso recompensada com o papel de palco para as conversas de paz e a futura cúpula EUA-Rússia.
Segundo e mais importante, estruturalmente, é a questão chinesa. A guerra de Putin, desde 2007, é contra o Ocidente. Geórgia e Ucrânia são etapas do processo, mas ao antagonizar-se com o EUA e Europa, o russo voltou-se para o antigo desafeto estratégico no leste.
Firmou, 20 dias antes de invadir a Ucrânia há três anos, uma aliança única com Xi Jinping, que deu muitos frutos. O comércio entre Rússia e China floresceu, e mais que duplicou desde 2020, chegando a um recorde histórico em 2024 de US$ 244,8 bilhões.
Com as sanções ocidentais, restou a Putin fortalecer laços com Pequim, que é seu maior parceiro e fornece de chips civis usados em drones militares aos carros que se multiplicam pelas ruas de Moscou. Outros parceiros do bloco Brics e afins, como Índia e Brasil, também ampliaram suas trocas com os russos.
Comércio China-Rússia | ||
---|---|---|
2020 | US$ 108,2 bi | |
2021 |
US$ 147,2 bi |
|
2022 | US$ 190 bi | |
2023 | US$ 240,1 bi | |
2024 | US$ 244,8 bi | |
Fonte: Alfândega da China |
Os EUA sugeriram, já no primeiro dia de conversas, o fim das sanções. Isso alteraria radicalmente o quadro econômico russo e, supondo uma normalização principalmente com a Europa, toda a arquitetura geopolítica para afogar a máquina de guerra de Putin pode ser desfeita.
Segundo os observadores, isso aponta para uma diversificação que afastaria Moscou de Pequim e de parceiros autoritários menores, mas importantes do ponto de vista militar, como a Coreia do Norte e o Irã.
Putin, dizem, não tem interesse nisso. Mas essas mesmas pessoas ressaltam o óbvio: ninguém sabe o que exatamente passa pela cabeça do longevo líder russo, no Kremlin há um quarto de século.