“Eu nunca tinha ouvido sobre o Saara Ocidental.”
A frase a mim repetida tantas vezes desde que publiquei dois textos sobre o país ocupado pelo Marrocos –”Como é a vida para as mulheres no último país da África sob colonização” e “Saara Ocidental: quando o Brasil vai reconhecer a soberania do país?”— me motiva escrever.
Até 2022, eu também quase não tinha ouvido sobre o Saara Ocidental. Foi em um encontro feminista no Quênia que Mahfouda Lefkir me explicou da ocupação marroquina, iniciada em 1976. Mahfouda me pediu para visitar sua casa, na cidade de Layooune, para que eu mesma pudesse testemunhar a violência.
Até a metade de 2023, não achava que teria condições de atender o pedido. Quando recebi financiamento para a viagem, acreditei que o principal desafio estava vencido.
Não fazia ideia de que mais de 300 jornalistas e observadores tivessem sido deportados do Saara desde 2014. Nem das constantes denúncias da Repórteres Sem Fronteiras à restrição marroquina à liberdade de imprensa. Entre 180 países avaliados pela organização em 2024, o Marrocos ocupa a posição 129 no Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa. O Brasil está no 82º lugar.
Quando conversei com Laura Daudén, autora de “Nem Paz Nem Guerra: Três Décadas de Conflito no Saara Ocidental”, e Bianca Pessoa, do Capire, que produziu o documentário “Uma Bandeira Fincada na Areia: Mulheres Saarauís Construindo Soberania”, fui compreendendo que o cenário era mais complexo. As diretoras da Casa Sueli Carneiro, a jornalista Mariana Belmont e uma dezena de especialistas foram fundamentais para que desenhássemos os protocolos que me permitiram não ser deportada.
Durante os preparativos, o jornalista saarauí Ahmed Ettanji, exilado na Espanha, sintetizou os cenários prováveis: em caso de sucesso absoluto, eu entraria em Laayoune, entrevistaria Mahfouda, mandaria tudo para o Brasil antes de a polícia chegar, ser interrogada e deportada; em caso de sucesso parcial, eu entraria em Laayoune, gravaria um pouco com Mahfouda, mandaria parcialmente o conteúdo para o Brasil antes de a polícia chegar, ser interrogada e deportada; em caso de fracasso eu não passaria do aeroporto e voltaria para Casablanca no mesmo vôo.
Diferentemente dos jornalistas saarauís e marroquinos que são presos, torturados, assassinados, jornalistas estrangeiros costumam ser deportados sem maiores violências. Entrei e saí, como poucas vezes é possível, em um cenário ainda melhor que o de sucesso absoluto.
Mas o medo que senti do interrogatório na entrada, ao ser seguida na rua permanentemente, ao me dar conta da quantidade de câmeras, homens fardados e bandeiras do Marrocos fincadas a cada cinco metros, me mostrou porque Mahfouda insistiu por minha visita. É difícil dimensionar a tensão e a violência constante em que vivem as mulheres do território ocupado sem caminhar por ele.
Depois das cenas de filme de aventura que nunca desejei experimentar –com o ridículo de correr na rua antes de entrar num carro e deitar no banco de trás–, passei 36 horas no apartamento de Mahfouda, ouvindo algumas das histórias que contei na coluna e na newsletter da Fósforo.
Em dezembro de 2024 estive no campo de refugiados saarauís na Argélia, onde conheci a dor de mulheres que não encontram seus parentes há décadas, separadas por um muro de 2.700 km construído pelo Marrocos, uma das maiores barreiras militares do mundo. Vi a coragem de mulheres que dedicam seus dias a procurar e desativar m inas explosivas espalhadas pela areia.
Por pouco tempo vivi o desafio de não ter um chuveiro no pó e no calor do deserto, o que tantas delas vivem diariamente. Sigo estudando e aprendendo com as mulheres saarauís sobre liberdade. A elas, toda solidariedade.
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